quinta-feira, 19 de março de 2009

Bipolar – Entre os dois pólos do humor



Melancolia (1514), por Albrecht Dürer

Em 2006 T.M. participou de uma viagem com um grupo de alunos de uma universidade carioca. Os professores seguiram em uma Kombi, e mais atrás foi um ônibus com 52 alunos. Lá dentro, alguns estudantes começaram a beber e fumar, causando um verdadeiro rebuliço. "Não agüentei, falei um monte de desaforos, segurei no bagageiro e aumentei muito a voz", contou. "O pessoal se assustou, eles não esperavam uma reação minha daquelas. Foi fora do meu comum, eu jamais faria isso. Não teria uma reação explosiva do jeito que eu tive."

A reação "fora do comum" relatada pelo estudante provavelmente não teria ocorrido caso ele não sofresse do transtorno afetivo bipolar, um conjunto de sinais e sintomas que podem durar semanas ou meses e que causa o estado do humor a variar de maneira periódica ou cíclica apresentando-se de forma normal, elevada -- chamada de mania -- ou deprimida.

Ao longo da vida, as pessoas apresentam estados de humor variados, mas ainda se sentem no controle. No transtorno afetivo bipolar, no entanto, essa sensação de controle é perdida, gerando muito sofrimento para os que convivem com o problema.

Até os anos 80, o transtorno bipolar era conhecido como psicose maníaco-depressiva. A partir daí passou a ser chamada de transtorno afetivo bipolar, uma síndrome que acomete, segundo estimativas, 1% da população mundial e de 1,8 a 15 milhões de brasileiros, nas suas mais diversas formas de apresentação.

O médico e professor de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, Valentim Gentil Filho, em entrevista ao Dr. Dráuzio Varella, afirma que a síndrome mudou de nome porque analisando separadamente, a denominação antiga carregava uma carga negativa, estigmatizada.

"Maníaco [de psicose maníaco-depressiva] é um termo técnico derivado do grego e significa loucura. De fato, na fase de hiperexcitabilidade, o indivíduo é o estereótipo do louco já que suas atitudes destoam, e muito, do padrão normal de seu comportamento. Depressivo era o termo mais brando dos três e que menos impacto causava. Por isso, considerou-se que a expressão psicose maníaco-depressiva era pesada demais para designar uma doença que, de certa forma, não era tão terrível quanto o nome fazia supor".

Para o psiquiatra e pesquisador Diogo Lara, em seu livro Temperamento Forte e Bipolaridade: dominando os altos e baixos do humor (ed. Revolução das Idéias), o humor bipolar poderia ser comparado a ter um par de patins: "em alguns lugares é difícil de caminhar, em outros anda-se muito mais rápido do que quem está sem eles. Quanto menor o controle maior a emoção!" Desta forma, para aqueles que conhecem bem os seus patins -- aprendendo a minimizar os riscos e andando em terrenos mais favoráveis -- tê-los pode até ter suas vantagens.

Altos e baixos

O termo bipolar expressa os dois pólos de humor: o da mania e o da depressão. Diferente de como muitas pessoas utilizam, equivocadamente, a palavra mania -- como mania de limpeza, de conferir as coisas, ou até maníaco no sentido de assassino, psicopata -- o termo médico é descrito de outra forma. Um episódio maníaco é descrito por Benjamin e Virginia Sadock, autores do livro Compêndio de Psiquiatria, como um determinado período de humor fora do normal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável.

Aquele que passa por uma crise de mania costuma falar muito, falar rápido, ter idéias de grandeza, se sentir muito poderoso, capaz, inteligente, bonito, rico, gastar de maneira desmedida, se sentir com mais energia que o normal e a sua libido tende a aumentar. O doutorando T. M., de 27 anos, foi diagnosticado como bipolar em 2007. Ele se descontrolava com seus gastos durante as crises maníacas. "Gosto muito de ler, mas acabava comprando uma quantidade de livros que eu não conseguia dar conta. Depois que eu comecei a me tratar, os excessos diminuíram bastante."

O recém-formado administrador de empresas F. F., de 24 anos, já passou por crises de mania em que ficava tão cheio de energia que passava noites sem dormir. "Eu já fiquei sete dias sem dormir no período de mania. A coisa que eu mais queria era dormir, mas não conseguia. Posso querer ficar um, dois dias assim, mas sete não. Eu já não agüentava mais, estava ficando pirado."

Assim como F. F, durante essas crises de humor "para cima", muitos bipolares passam a dormir menos horas por noite e não ficam cansados. Além disso, emendam um assunto no outro -- mesmo sendo capazes de manter uma coerência lógica. Costumam ficar muito desinibidos, perdendo a noção crítica do que é aceitável para cada situação, fazendo besteiras e achando tudo normal. É como se o bipolar estivesse em pleno carnaval, se divertindo e brincando com todos, mas de maneira, muitas vezes, inadequada.

No outro pólo do humor, durante as crises de depressão, as pessoas costumam ter idéias negativas, de ruína, sentem-se tristes e com energia baixa. Atividades simples e cotidianas, como tomar banho e escovar os dentes, podem até ser deixadas de lado. A perda do apetite é comum, mas às vezes pode-se ganhar mais peso. O indivíduo fica mais lento, sem vontade de sair da cama, e costuma ter dificuldades de concentração. Em casos mais graves, pode pensar em cometer suicídio, chegando até as últimas conseqüências.

Segundo a psiquiatra Magda Vaissman, a depressão é uma das maiores causas de suicídio e afastamento do trabalho, trazendo enormes prejuízos pessoais. "No caso de álcool e drogas, a maior parte dos pacientes, eu diria que 60% ou 70% dos pacientes, têm um transtorno afetivo associado".

Estimativas publicadas no site da Associação Brasileira de Transtornos Bipolares apontam que até 50% dos portadores tentem o suicídio ao menos uma vez em suas vidas, enquanto cerca de 15% efetivamente o cometem. Trata-se, portanto, de um transtorno grave que não só pode incapacitar o indivíduo -- que não conseguirá levar uma vida normal de trabalho ou social --, mas que também põe em risco a própria vida.


Os principais tipos da doença


Para entender um pouco mais sobre o transtorno afetivo bipolar, é preciso saber como a doença é classificada. De acordo com a classificação do livro Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), um dos parâmetros utilizados pelos médicos, os transtornos bipolares são enquadrados em tipo I e tipo II.

O tipo I é aquele em que o paciente apresenta os quadros clássicos de mania e depressão, podendo um ser mais freqüente do que o outro. Em geral, as crises depressivas são mais freqüentes e ocorrem por períodos mais longos do que as crises maníacas. Estima-se que cerca de 1% da população mundial seja bipolar do tipo I. O tipo II -- manifestado por 6 a 8% das pessoas -- ocorre quando existem crises depressivas e crises de mania mais leves, chamadas de hipomania.

Essas alterações leves de humor eufórico são geralmente de difícil diagnóstico e podem não ser detectadas pelo médico. "Como é um quadro mais leve e não causa problema nenhum, o indivíduo fica mais ativo. Na verdade, ele fica melhor e todo mundo gosta", diz o Dr. Elie Cheniaux. O paciente costuma trabalhar melhor, por mais tempo, e pensa de maneira mais criativa. Na vida pessoal, costuma ser mais fácil conhecer novas pessoas, pois ele tende a se tornar mais sociável.

E é aí que mora o perigo. O bipolar, em crise de mania, pode nem chegar ao médico por considerar positivo aquele tipo de humor ou por achar que episódios como aqueles são perfeitamente normais. Por isso, as crises de mania leve podem não ser relatadas pelo paciente ou não ser detectadas pelo especialista. A depressão é mais facilmente diagnosticada, por outro lado. Esta dificuldade pode ser refletida no tratamento, já que antidepressivos podem desencadear a mania no paciente bipolar.



Conheça as áreas afetadas no cérebro de um bipolar e o que os cientistas estão começando a descobrir:




Principais causas


Como para a maioria dos transtornos mentais, o componente genético desempenha um dos papéis mais importantes no desenvolvimento do transtorno afetivo bipolar. Segundo dados do livro Temperamento Forte e Bipolaridade: dominando os altos e baixos do humor, há uma chance razoável de um pai e uma mãe bipolares terem filhos com as mesmas características. No caso de um par de gêmeos idênticos, se um deles tem o transtorno afetivo bipolar, há 80% de chances de que o outro também o tenha. Por isso, uma avaliação psiquiátrica completa não pode deixar de levar em conta a história familiar do paciente.

F.F. conta que seu avô tinha o mesmo transtorno que ele descobriu ter na infância. "Ele era Procurador Geral da República e ganhava bastante dinheiro, só que torrava tudo. Ele nunca teve uma vida estável, muito pelo contrário."

Além do componente genético, acontecimentos da vida podem ajudar a desencadear as crises. Em geral é muito comum ocorrer algum episódio ruim, alguma ocorrência de estresse. Depois da primeira crise, passa a ser menos freqüente que um evento seja o causador destas crises.

Apesar de ser uma doença cujos sintomas sejam bem definidos, ainda se sabe muito pouco sobre as suas causas. Os casos típicos são simples porque não se tratam de meras flutuações do humor, de sentimentos de alegria ou tristeza. "Existe todo um conjunto de alterações em que o individuo fica muito diferente do normal, o leigo percebe que ele não está normal, embora possa não saber o nome da doença", alerta o Dr. Elie Cheniaux.



Tratamento

Apesar de se tratar de um transtorno que pode causar graves alterações no humor do bipolar, afetando a sua vida diretamente, a boa notícia é que existe tratamento eficaz. O objetivo principal do especialista é tentar reduzir os fatores que desestabilizam o humor do paciente, embora a doença não tenha cura. O acompanhamento farmacológico deve ser feito por toda a vida.

O lítio é um dos primeiros medicamentos que surgiram e ainda é uma dos mais usados como estabilizador de humor -- embora funcione melhor na prevenção de crises maníacas do que para crises depressivas. Como qualquer medicamento, o lítio também pode causar efeitos colaterais. A.L., de 28 anos, teve sucesso com este medicamento, mas sentiu seus efeitos negativos: "No meu caso, o lítio foi o estabilizador de humor que mais funcionou, porém os efeitos colaterais foram bem ruins". Ela conta que a sua pele ficou mais ressecada, teve queda de cabelo -- e perda de brilho -- e aumento de peso. "Eu bebia muita água também, já que a sensação de sede é constante".

Alguns antipsicóticos -- usados para tratar esquizofrenia e outros quadros psicóticos -- e anticonvusivantes funcionam, embora não se saiba exatamente o motivo.

Tratar a depressão bipolar é mais complicado do que tratar a depressão unipolar -- que ocorre sem que existam episódios de mania --, já que ela é muito menos estudada. Existe um grande risco de o depressivo bipolar mudar para a mania. "Os antidepressivos favorecem isso, pois o paciente melhora, melhora, melhora tanto que vai para a outra crise", ressalta o Dr. Elie Cheniaux. Surge, então, uma polêmica: antidepressivos devem ou não ser usados no tratamento da depressão bipolar? Alguns médicos apóiam a sua indicação, com muita cautela, enquanto outros são totalmente contra.

Acima de tudo, o tratamento contra a depressão é extremamente importante porque o bipolar costuma permanecer mais tempo em depressão do que em mania. Em casos de episódios mistos -- em que o bipolar apresenta características tanto de mania quanto de depressão --, o risco de suicídio aumenta ainda mais. Isso porque a tristeza e a desesperança, que fazem o indivíduo ter vontade de morrer, são sinais típicos da depressão. No entanto, o indivíduo não se mata porque ele se sente tão desprovido de energia que não tem sequer forças para levar a cabo o seu desejo. No episódio misto, então, ele pode manter essa desesperança, mas tem forças suficientes para tentar se matar.


Como ajudar?


Ainda que para a maioria das pessoas que estejam vendo de fora seja difícil entender o que está acontecendo com um bipolar, a ajuda de amigos e familiares é fundamental. "Quem está de fora pode ajudar com mais sucesso oferecendo apoio, compreensão e disponibilidade para atenuar os prejuízos do momento", afirma o Dr. Diogo Lara. Ele ressalta em seu livro que muitas vezes é um familiar que toma a decisão de procurar ajuda especializada, já que o doente não tem energia, pode negar a necessidade de tratamento ou porque teme ir a um psiquiatra ou psicólogo.

Existem casos, no entanto, em que a própria família do paciente tem dificuldade de entender e encarar a doença, daí a importância de se informar da melhor maneira possível. Há aqueles que chegam a achar que a depressão não é nada mais que preguiça, e a mania, "falta de vergonha na cara". Isso porque, para grande parte das pessoas, as enfermidades mentais não são consideradas doenças e porque ainda há um estigma por trás do tratamento psiquiátrico.

Criatividade

Embora existam alguns estudos acerca deste tema, não há comprovação de que haja uma relação direta entre a criatividade e o transtorno bipolar. Mesmo assim, uma rápida busca pela internet nos revela uma lista enorme de personalidades famosas -- e extremamente criativas -- que foram diagnosticadas ou que se aponte como sendo bipolares: Kurt Cobain, Vincent Van Gogh, Janis Joplin, Elizabeth Taylor, Edgar Allen Poe, Ulysses Guimarães, Leon Tolstoy, Jackson Pollock, Mozart, Virginia Woolf, Winston Churchill...

Para a Dra. Magda Vaissman, uma teoria para responder a esta dúvida poderia ser o fato de que muitas pessoas que sofrem do transtorno afetivo bipolar são extremamente sensíveis. "Elas vêem a vida de uma maneira colorida demais, por extremos. Isso provoca reflexões nas pessoas e a produção artística está relacionada a isso."


O bipolar Thiago Marinho ressalta o lado negativo que existe por trás de um falso "glamour" conferido ao transtorno. Muitos adolescentes, que têm como ídolos roqueiros como Kurt Cobain (foto), Axl Rose, entre outros, acabam querendo incorporar aquela atitude do ídolo, associada às pretensas características de um bipolar. "Não gosto desse glamour que estão dando para o transtorno bipolar, não é brincadeira."

Apesar da gravidade da doença, é necessário repetir que um bipolar pode, sim, levar uma vida normal como qualquer outra pessoa, desde que seja bem assessorado por profissionais qualificados.

* Gostaria de agradecer a ajuda e o material fornecido pela psiquiatra Cloyra Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a execução da matéria.

Clique aqui para conhecer sites de instituições nacionais e internacionais que esclarecem dúvidas sobre o transtorno bipolar.

Livros e filmes que abordam o assunto.


Onde achar tratamento?

Depoimento de um Bipolar

O Transtorno Afetivo Bipolar afeta milhares de pessoas no mundo inteiro. No seu blog “Para além da borda” uma amiga publicou um depoimento impressionante feito na primeira pessoa por uma portadora do Transtorno bipolar. Pedi-lhe que me autorizasse a publicação deste testemunho. Espero que sirva para nos sensibilizar e para todos os que sofrem deste mal e que podem ser nossos familiares, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Espero também que contribua para alertar pais e educadores para os sinais permitindo uma intervenção o mais precoce possível

Abaixo o depoimento da Adélia Prado.

Abraço a Todos!

A.Ferro





O mundo é bom, mas é ininteligível”.
Adélia Prado


“O que é pior: uma notícia de morte ou uma doença incurável? A pergunta martelava dentro do meu cérebro durante todo o trajecto de volta. A cabeça encostada no vidro, o corpo exausto na poltrona, olheiras e alguns quilos a menos, misturados a uma vontade quase visceral de gritar. Assim suicida, no meio de um autocarro. Eu havia dito “não é possível”, eu disse, eu falei bem alto “não há casos na família”, encontrei motivos para cada escala da minha montanha-russa e fatos “bem datados” da minha biografia. E o pior é que, no fundo, eu sabia ser verdade. Quando a gente recebe uma notícia de morte é como se o tempo parasse, subitamente as palavras perdem seus significados e se transformam em um amontoado de sons, in-su-por-tá-veis. Em instantes um arrepio varre o corpo do calcanhar à nuca, o corpo inteiro treme e logo é invadido por uma sensação de queda, os sentidos se armam e a adrenalina corre no sangue como se fosse explodir nas veias. Parece que nunca termina. A frase é repetida uma centena de vezes na cabeça até que se entenda a aridez do que é a morte. Sua terrível concretude. Mas, ainda assim, a morte é externa. Já, quando se recebe a notícia de uma doença incurável, a primeira sensação é a negação. “Há algum erro, isso não pode ser possível”, ou “você está brincando”, ou o silêncio sardónico e incrédulo de quem abrirá a porta de saída e imediatamente procurará uma “segunda opinião”. Só que, no fundo, bem no fundo mesmo da alma, a gente sabe o que é verdade e busca desculpas para si. “Por que comigo?”“, com tanta gente no mundo, por quê logo a mim?” Não há como escapar. De repente é como se a gente acordasse em uma outra vida. Aquele não é mais o nosso corpo, é qualquer outra coisa totalmente alheia e quase irreconhecível. Então vem o medo, o pavor daquilo ser “eterno”. E o horror de não poder ir embora. Assim foi quando me disseram. Depois, quando a gente já procurou a terceira e quarta opiniões, e já está ficando ridículo simplesmente não aceitar o que já é um fato, a gente fica meio que histérico e apavorado por informação. Cata em tudo quanto é canto qualquer coisa: depoimento, carta, artigo, livros de diagnóstico, sítios da Internet, quadrinhos. E fica revivendo aquele assunto por uma infinidade de dias, mais ou menos o tempo da próxima consulta. Aí, a gente toma finalmente coragem e começa o tratamento. É assim com todo mundo, e foi assim comigo também.
É claro que antes o médico já fez o histórico da sua “doença”, já sabe +/- em que tipo ou subtipo você se encaixa, quantas crises você já teve, quando a doença começou a fincar seus tentáculos e a destroçar suas emoções. Seu cérebro, embora extremamente capaz e criativo, vivo, produz neurotransmissores de forma diferente. E isso, fundamentalmente biológico, possui reflexo nas suas emoções e comportamento de tal forma que é como se você estivesse em uma montanha-russa: às vezes lá em cima, às vezes lá em baixo. Isso, para seu desespero, acontece com frequência. No meu caso, em uma questão de dias (ciclagem rápida, como chamam).
E, sendo assim, o médico, e somente ele, decide que tipo de medicação você terá que tomar continuamente (eufemismo para “o resto da vida”), e a melhor forma de te “tirar” da fase aguda (eufemismo para “mais remédios”) da crise. Eles são chamados: estabilizadores de humor. São o famoso lítio, o ácido valpróico, o divalproato de sódio, a onlazapina e a carbozepina. O primeiro é o mais usado e o indicado para as modalidades “clássicas” da doença. O segundo e terceiro para os cicladores rápidos, como a voz que vos fala.
Nada se compara à sensação de perda de autonomia que a necessidade de uma medicação de uso contínuo produz, ainda mais quando esta possui efeitos colaterais importantes. A vontade de parar é enorme. Mesmo sendo uma pessoa responsável, ciente dos riscos, parei o tratamento diversas vezes. Não preciso dizer que quase morri. Por isso sei que não há nada pior do que a doença, perto dela os efeitos colaterais são vidro, estilhaçam-se no chão. Depois soube pelo Doktor que isso acontecia também com todo mundo. Certa vez, quando eu estava visivelmente doente, numa das piores depressões que experimentei, pálida feito um papel, choramingando para falar num tom de voz ínfimo, trémula, resumindo - um fiasco - uma grande amiga me disse “Você havia melhorado. Por que parou? Você devia pensar não no fato de que você vai ter que tomar os remédios para sempre, e sim, no fato de ainda bem que eles existem para te ajudar a sair dessa”.
Guardei a frase. Havia sido a mais sensata dos últimos dez anos da minha vida. E olhando para trás, para tudo o que perdi, as pessoas a quem assustei, preocupei e prejudiquei de alguma forma, para as coisas inacreditáveis que fiz: andar no meio dos carros com um headphone aos berros nos ouvidos e cantarolando músicas de todo tipo, feliz da vida achando que nada poderia me atingir ou machucar; ficar depois da linha amarela do metro só para sentir o vento dos vagões passando em alta velocidade bater no rosto; sentir uma vontade de falar sobre tudo o que vinha à mente para t-o-d-a-s as pessoas, inclusive para as não conhecidas; atrapalhar conscientemente o trabalho alheio; fazer duas faculdades enquanto fazia dois estágios e escrevia dois livros e lia, lia, lia, dormindo pouco e me sentindo bem (a parte perigosa da montanha-russa – a que ilude, inebria, atrai, seduz e faz você perder os amigos, o dinheiro e o respeito das pessoas); para em questão de dias, parar de comer; ficar exausta e falando quase nada, saindo de casa o mínimo possível e pela garagem (para não ter que dar bom dia para o porteiro e não correr o risco de encontrar nenhum vizinho simpático); perder o interesse pelas coisas; ver as notas baixarem; ver tudo perder o sentido; cada ato tornando-se penoso e insuportável; pensar o tempo todo em morte e planejar que ela aconteça, e rápido (a parte perigosa da montanha russa – a que te faz perder o emprego, o estudo, e, falando em bom português, podendo te levar ao suicídio). Não quero nada disso para mim, quero experimentar a vida como ela é, não quero lentes.
E para que isso ocorra, tenho que ser forte e acordar forte todas as manhãs e saber que embora minhas mãos tremam e me impeçam de tocar piano (uma das minhas paixões), hesitando como se eu tivesse oitenta anos, tenha falhas de memória e uma gastrite, nada é comparável ao desespero de uma crise e da vontade de sair dela. Ainda que, por mais paradoxal que seja, já que não é uma doença rara, seu tratamento custe muito caro e uma crise me possa levar o emprego. É muito melhor acordar todas as manhãs e ver a beleza de um dia de sol.
Tudo bem que me consola o fato de que Bethoven, Van Gogh, Faulkner, T. S. Elliot, Virgínia Woolf, Joyce e outros também sofressem do distúrbio e tenham, apesar disso, e melhor, com isso, deixado para a humanidade obras incríveis. Sei que se todos eles, e todos nós, pudessem, e pudéssemos escolher, não o escolheriam, e não escolheríamos, e talvez preferissem/ preferíssemos não deixar nada tão brilhante assim se isso lhes/ nos custassem, como custou, partes importantes de suas/ nossas vidas.
Assim como não concordo com absurdos proferidos por pessoas cuja acuidade mental deve ser mais ou menos próxima a de uma trepadeira, que insistem em dizer coisas do tipo: -ah, conheci um bipolar que não era assim como você; ou, -você deve fazer uma forcinha e parar com os remédios, você pode viver sem eles; ou aqueles que pensam que somos perigosos e incapazes. Pois fiquem sabendo que a vivencia existencial de uma pessoa é única, portanto, a forma como a doença se manifestará também é única; e embora isso não seja regra geral, muitos dos mais sensíveis e inteligentes membros da sociedade são portadores dela e não raro perdem suas vidas desnecessariamente por esse tipo de covardia moral que é o estigma. Fazendo com que muitos jamais procurem tratamento por medo de assumir, até para si próprios (como aconteceu comigo), que sofrem de uma doença mental, pois sabem intimamente que a sociedade que os circunda, inclusive a família, não irá aceitar e rejeitará ter que oferecer para esses que destoam algo que ela não pode dar, porque não entende. E não entendendo, simplesmente, abandona.
Eu nunca pensei que falaria sobre isso. Na verdade, sempre fiz por negar sua existência, por mais de dez anos fingi nada saber a seu respeito. Achei que, negando-a sempre, ela acabaria por me deixar. Não deixou: agravou-se. Meu desempenho intelectual, mesmo com a doença e as consequentes depressões, era e é acima do normal, mesmo eu sabendo que não estava rendendo nem um terço da minha capacidade. E ficava melhor e mais visível nas fases de hipomania/ mania quando minha timidez diminuía e a capacidade de expressão aumentava. E eu fui me iludindo, achando que mantinha algum controle, que as emoções negativas e positivas jamais teriam autonomia sobre mim, vendo os espaços de tempo entre uma fase e outra diminuindo, a intensidade aumentando, até que ficou incontrolável. Quase larguei a faculdade no penúltimo período, relaxei nos estágios, emagreci dez quilos, quis me matar diversas vezes. E por mais que me saltasse aos olhos que algo de profundamente errado estava acontecendo, ainda assim eu me recusava a procurar ajuda por medo de ter a minha capacidade posta em xeque. Essa era a parte lúcida, a única, da minha mente, que ainda me protegia. No entanto, essa mesma mente se recusava a perceber que a minha vida era o que estava realmente em xeque. Minha capacidade intelectual está preservada. Completamente. Então, percebi que ao calar a doença, evitar ao máximo que as pessoas soubessem era uma forma covarde de agir. Quantos como eu precisarão de dez anos de sofrimentos inenarráveis para procurar tratamento? Não adianta fugir, como eu disse, não há escapatória. Eu fugi da luta enquanto pude, erradamente. Não falar, não só é uma forma de ser conivente como é um atentado contra a minha dignidade, contra tudo o que eu acredito enquanto valores. Eu, que jamais julguei ninguém. Eu, que fui criada para amar meus semelhantes e a mim mesma acima de todas as coisas. Isso está, e estará, irremediavelmente acima de todo e qualquer preconceito. E toda a vez que eu o fizer estarei prejudicando outros na mesma situação, fragilizados por uma doença devastadora se não controlada, que tem tratamento. E me juntarei aos covardes que me estigmatizam. Não. Somente quem já viu a morte de perto sabe o tamanho de seu poço. Não. Renuncio ao confortável silêncio dos meus comprimidos e da minha casa, à minha arrogância, à minha pretensão para não jogar no lixo minha essência e meu carácter. Não sou e jamais serei uma avestruz. Prefiro dar a cara para bater.
E cá estou, incólume, em casa, formada e já sem emprego, contando essa história para vocês”

3 comentários:

Salamandra disse...

Quero deixar o meu profundo agradecimento.Este relato da Adélia é extremamente comovente,corajoso e de uma entrega total.Emocionei-me bastante,já tinha ouvido falar da doença e seus sintomas mas...este relato falado na 1ªpessoa faz-nos estremecer e pensar se o amigo,vizinho ou o colega de trabalho não estará com algum problema seja este ou outro.
Obrigada são estes testemunhos que nos fazem pensar que a Vida foi a maior dádiva que Deus nos deu.
Não sai mais nada desculpem.
Obrigada Adélia, Viajante, bem haja
Beijinho,para os dois que a Luz acompanhe sempre os seus passos.
Um abraço na vossa alma
Salamandra

IdoMind disse...


Se viver fosse fácil não haviam psicológos, médicos e…advogados.

Cada um com a sua cruz, com o peso e a medida certa.Com ela vem a Força suficiente para carregá-la.Disto não tenho dúvidas.

Este relato enquanto vivência de alguém que experimentou e experimenta fazer uma vida “normal” com uma doença incapacitante é claro que não pode deixar de me tocar.

Todavia os infortúnios que nos batem à porta não nos dão o direito de julgarmos que o nosso caminho é o mais penoso de todos e muito menos de menosprezar a ajuda, se calhar nem sempre a mais idónea, que nos queiram prestar.
A autora do relato parece que anda à luta com ela própria mas sovando os outros…

É natural que nem sempre se saiba como reagir diante de uma pessoa, neste caso, com problemas do foro mental.A tendência será um certo paternalismo,uma certa condescência ou até um certo receio.Depende da pessoa e depende do relacionamento que se tem com quem está a sofrer desse ou de outros males.
A ignorância ou a pouca informação sobre o problema pode levar-nos a dizer tudo menos aquilo que a pessoa gostava de ouvir, mas de modo algum isso significa que tenhamos “ (..) a acuidade mental deve ser mais ou menos próxima a de uma trepadeira..”


Quem não é estigmatizado? Mais importante: quem não estigmatiza? Se eu falar em ex-presidiário, o que vos vem logo à cabeça?Se eu falar num cego, em que pensam imediatamente? Sejam sinceros, todos acabamos por estigmatizar.Fazêmo-lo quase instintivamente, tão treinada que está a nossa mente para sobreviver nesta teia de relações em que nos movemos.

Conforme referi, lamento que a autora do texto tenha a doença, mas lamento sobretudo a amargura que ressalta das suas palavras.


Agora o outro lado da questão: que a gente aprenda a VER os outros e não apenas a olhá-los…

Beijos.
Bem Haja

vitoria disse...

Sou apelidada de bipolar e essa foi uma das inumeras razoes q levou o estado a me aposentar precocemente emPortugal.
Digo apelidada pq por experiencia,finalmente,aprendo,que podemos mudar tudo nas nossas vidas.
Tomo medicamentos mas por livre arbitrio exclui os piores desse tratamento,tendo substituidoo anti depre e o regulador de humor por horas de fisioterapia e oração.
Não sei como,mas se Deus me ajudar ainda hei-de escrever alguma coisa que ajude os outros,ditos bipolares.
Parabéns pelo teu blog.:)